Análises, Colecionáveis

Batman: Cavaleiro Branco (Análise)

Foi dada a Sean Murphy (Hellblazer, Off Road) a oportunidade de se experimentar sob a totela do selo “DC Black Label”, e com a ajuda de Matt Hollingworth na ilustração e nas capas, criou o universo “Batman: Cavaleiro Branco”. O seu volume de abertura, lançado em 2017 (embora finalizado apenas em 2018) foi reunido pela Levoir e localizado para o nosso país com uma belíssima edição de capa dura e apresenta, basicamente, mais uma visão desconstrutiva do Batman, não só como homem, como também como conceito.

“Batman: Cavaleiro Branco” situa-se numa altura em que um envelhecido Batman é posto à prova por Jack Napier, nada mais nada menos que Joker na sua “pele real”. Napier, agora curado da loucura que o torna o vilão mais temido de Gotham, quer provar a todos que a persona que Bruce Wayne incorpora é mais prejudicial que vantajosa para a população e tudo o fará para chegar ao seu objetivo.

Para rescrever, há que ler o que foi escrito

Sean Murphy é conhecido por ter, desde muito novo, um conhecimento intensivo de BD de vários tipos, o que facilita bastante a escrita deste título. O argumentista tem perfeita noção de todos os elementos que tem postos em cima da mesa e domina a obra já editada de Batman, desde as mudanças estéticas de Harley Quinn, até às características primárias dos vilões mais emblemáticos. Soube bem mexer com o tabuleiro de Gotham e, unindo a algum histórico da política e opinião públicas americanas, conseguiu criar um universo próspero de intrigas e questões.

Acho interessante, por exemplo, da utilização dos poderes do Chapeleiro e do Cara-de-Barro para o controlo dos vilões, ou o uso das duas “versões” de Harley Quinn para adicionar mais uma personagem. O conhecimento do funcionamento de Gotham como sociedade também ajuda no bom desenvolvimento da história.

Este não é só um ataque ao Batman como herói, mas sim como conceito

Com o cenário montado por Murphy preparado, estão reunidas as condições para escrutinar a função do Batman na sociedade.

Primeiro, vamos falar do morcego. O envelhecimento do herói não é só físico. Há também um desgaste relacional entre o Wayne e os seus companheiros e também entre a sua figura e o público. E como todas as relações desgastadas, há defeitos que se põem à tona e há e problemas que merecem ser apontados. A excessiva sede de vingança de Bruce, necessária para tapar lacunas emocionais, não só pelos seus tramas, mas também pela iminente perda de Alfred cria um enorme mau estar com os seus pupilos Batgirl e Asa Noturna, que reagem à sua maneira. E a própria figura do morcego começa a ficar ultrapassada e antiquada para o público mais jovem, como eu. Murphy sabe pegar nessas pontas por limar e criar as consequências necessárias para criar uma desconstrução imersiva e prazerosa de se ler.

Falemos agora de Gotham. A cidade serve como pano de fundo à exposição do autor. O pouco eficaz combate ao crime das autoridades de Gotham pode claramente ser transmitido para o cenário político norte-americano. De um lado o Batman, o rosto de quem acredita que o crime só é resolvido com a violência, que todos os meios são poucos para o seu combate e que tudo é justificável para uma sociedade segura. De outro, Napier e a sua organização policial, que possuem uma postura mais moderada e compreensiva em relação ao crime nas ruas. Por um lado a elite que não só é pouco prejudicada, como às vezes é beneficiada pelos estragos causados pela “justiça sem limites” do vigilante. Por outro, a sociedade periférica, principal injustiçada do combate à justiça. É clara a transcrição da discussão americana acerca da ação policial para uma Gotham mergulhada no caos e no cansaço em todas as suas esferas. Blackport é uma zona interessante de estudo dessa analogia. Uma região periférica que hora é esquecida pela elite, ora é utilizada como arma de arremesso político de Jack Napier. Ainda falta uma peça do jogo alegórico. Já se personificou a violência policial, a revolta pública, agora só falta mesmo personificar o crime. E aí entra a Neo-Joker.

Infeliz com o status-quo que a levou a um estado letárgico que só terminou com a sua presença no crime organizado, sob a tutela de Joker. Neo-Joker mostra outra faceta do cansaço, o cansaço da população, que ano após ano se vê traída pela sociedade, uma vez que não tomou nenhuma recompensa de a integrar na regularidade.

Assim levanta-se a pergunta. O que o Batman faz na sua história é o correto? Vale tudo no combate ao crime?

Vale tudo no combate ao crime? Penso que não entendi na perfeição

Até agora teci elogios à forma como Sean Murphy soube pegar no seu conhecimento intra e extra Batman para tecer uma alegoria sobre o morcego e sobre o combate ao crime no geral. No entanto, penso que ele não foi capaz de finalizar a sua crítica na perfeição, e isso frustra-me.

Frustra porque parece que o autor foi pouco ousado no desfecho dos seus assuntos e pouco coerente em alguns casos.

Primeiro vamos às incoerências. As primeiras caem sobre o plano de Jack Napier. Se o objetivo era provar que a violência excessiva do Batman era errada, talvez controlar uma legião de vilões para forjar um eventual excesso de violência do Batman não será a melhor ideia. Primeiro porque dá a ideia que o ex-Joker precisa de criar uma situação para o argumento fazer sentido. Se a crítica ou o argumento, como queiram chamar, for sólida, não é preciso forjar nada.

Depois, um dos bons pontos de Jack é o custo da reparação de estragos da cidade. Que custa bastante aos contribuintes e que até fundos públicos são ilegalmente desviados para essa reparação. Descobre-se, mais tarde que esses fundos públicos são financiados pelas empresas Wayne e que Joker sabe que Bruce Wayne é o Batman. Fico desiludido que, num questionamento sobre o Batman, ele seja “desculpado” no final, parecendo quase falta de coragem de o colocar num patamar capaz de sofrer com as consequências dos seus atos.

E isso vai conduzir ao erro do desfecho. Depois de mais de 200 páginas pouco mudou. O Batman continua a ficar numa boa figura, porque até ajuda a população com reparações e outro tipo de ajudas, o Napier acaba por ter de confessar a sua batota, é preso e volta a perder o controlo para a sua faceta de Joker. Tudo ficou conservado.

É verdade que o Batman no fim promete revelar a sua identidade secreta e o legado da campanha de Napier deve ter consequências. Mas aquilo que vemos nas últimas páginas é apenas o Batman a salvar o dia com ajuda dos antigos e novos amiguinhos e o anúncio dessas mudanças, não as suas consequências. Ou seja, para o leitor, essas mudanças acontecerem é igual ao litro, porque elas não serão vistas, logo não serão palpáveis.

Sean Murphy claramente teve medo de mexer nos papéis das personagens. Eu compreendo, não deve ser fácil reler personas tão emblemáticas da cultura pop e não ter medo da reação do público. Mas acabei por me sentir pouco recompensado por ter chegado ao fim, pelo excesso de conformismo com o status quo da obra. Ela prometeu-me mudanças e deu-me estagnação.

Ah, e a lenga-lenga da Harley Quiinn acerca da virtude do “centro” e que se juntarmos Batman e Joker estaremos muito bem, para mim, não funciona. Juntar dois polos tão extremados como herói e vilão e uni-los, não só me parece perigoso como altamente irreal, então nem essa ideia do autor me convence.

Conclusão

Na minha opinião, “Batman: Cavaleiro Branco” soube agarrar nos assuntos chaves de uma visão ultrapassada de um herói do século passado e controlá-la a seu favor, apesar de não conseguir atribuir um final adequado a essas questões. A pouca ousadia perturbou uma obra que, até ao seu capítulo de desfecho era praticamente perfeita e torna a BD numa desilusão.

Mas não é uma desilusão porque é um mau título, apenas porque tinha potencial para ser melhor e mais fraturante, mas perdeu-se no conformismo radical de Sean Murphy.

Destaque ainda para a linda ambientação que ele e Matt Hollinsworth souberam dar ao volume. Conseguiram dar a sensação de cansaço, negritude e destabilização necessárias para uma obra deste estilo.

Recomendo, mas com cautelas e darei um 7.

7.0
Score

Pros

  • Boa BD esteticamente
  • Bons temas abordados
  • Personagens independentes e cativantes

Cons

  • Mau desfecho

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